Cultivastes. Cultivar. Verbo transitivo direto com vários significados. Tudo o que você cultiva, você vai colher alguma hora, sejam coisas boas ou ruins, esse aqui é o resultado em palavras da colheita do que eu cultivei durante esses anos.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Luto

Saí mais cedo naquele dia e resolvi parar num desses carrinhos de lanches, aqueles que colocam cadeira e mesa na calçada. Médicos podem falar que faz mal e todo aquele blá blá, mas a coisa é boa mesmo. Lá estava eu esperando o lanche, ficar horas numa cadeira e ser bombardeada de conteúdos é complicado. Parei de prestar atenção na notícia de mais uma tragédia lá do exterior que estava sendo noticiada no jornal, "o mundo está de luto" dizia o repórter, quando um menino de mais ou menos 15 anos riu, deixou o seu lanche na mesa e virou para mim.

"Morre preto da favela todo dia e ninguém faz nada, ninguém fala nada, a gente é invisível ou o quê? Eu só quero andar na rua em paz, moça. Eu só quero ir numa loja e nenhuma daquelas tias ou aqueles caras grandões me acharem suspeito. Eu só sou preto, não sou ladrão não. Não sei o que esses caras querem com a gente, aqui a maioria é de bem sabe? Claro que tem uns que vão pro outro lado mas assim, ninguém dá nada por eles não, os caras não tem nada a perder moça. Assim como ninguém dá nada para a gente. Governo trata a gente aqui pior que lixo. Parece que só porque a gente é pobre e preto não tem direito. Nós temos direito sim né não? Não é isso que vivem dizendo que a gente deve procurar? Mas óh moça, eu já vou indo. Desculpa interromper seu lanche aí com esse papo de preto da favela. Vou voltar é comer esse misto aqui que talvez não tenha nada pra comer em casa, já que fecharam meu colégio." 

Apenas me calei e concordei com a cabeça. O mundo estava de luto por coisas que aconteciam lá fora? Eu estava de luto pela realidade daquele menino. Pelos cinco jovens negros que foram assassinados por parecerem suspeitos, pela mulher negra que foi violentada e virou mais uma na estatística. Eu estava de luto sim, mas era pelo meu país.

domingo, 22 de novembro de 2015

Casamento

Final de semana passado uma amiga me mandou uma mensagem convidando para um casamento. Casamentos me fazem chorar. Mas era final de semana e eu não queria ficar em casa jogada no sofá com um balde de pipocas, uma panela de brigadeiro e o notebook conectado na televisão passando episódios atrás de episódios da minha série favorita, já que a correria dos dias da semana não me deixaram assistir. Respondi “sim” depois de alguns minutos, lá ia eu às 21h para o tal casamento. 

Caiu à noite e eu comecei com a tortura de achar um vestido descente, eu deveria ter procurado mais cedo. Eu e meu costume de deixar tudo para ultima hora. Achei um vestido azul marinho, o cabelo caia em cascata e eu estava pronta - logicamente usando o inseparável batom vermelho.

A igreja era pequena, eram poucos convidados e a decoração era simples. Tudo ao contrario dos casamentos que eu já tinha presenciado – uns três ou quatro. E com o clássico atraso, a noiva chegou, ela era linda. E ele parecia ainda mais emocionado ao vê-la naquele traje branco. E com o inicio da cerimonia, minhas lagrimas vieram a cada palavra do celebrante, a cada palavra que os noivos diziam um ao outro. Mesmo com a simplicidade do local, o sentimento era nobre.

“Querido, ainda lembro-me do dia em que te vi pela primeira vez. Ainda lembro-me do primeiro abraço, beijo, jura, lembro-me de quando nós nos entregamos um ao outro de corpo e alma. E tudo ainda consegue parecer tão vivo como se fosse à primeira vez. Eu ainda consigo sentir as tais borboletas que sempre me falaram da existência somente com o seu toque, ainda consigo suspirar ao ver você arrumado para ir a alguma festa e eu ainda tenho a paz que só o teu abraço me trás.”

“O teu riso ainda é a minha coisa preferida, já percebeu que seus olhos ficam pequenininhos quando sorri? É lindo. O teu beijo ainda consegue despertar sensações que conheço e outras que ainda são novas, o teu abraço, querida, ainda consegue ser a minha calmaria depois de um dia ruim e nos dias bons, ele é complemento para deixar tudo melhor. Desculpe-me pelo clichê, mas, você é muito mais do que eu pedi. Você consegue se reinventar todos os dias e consegue que eu faça isso também, é por isso e por várias outras coisas, que eu quero dormir e acordar ao teu lado todos os dias, e digo que a eternidade é pequena para nós.”.

E sem nenhum “eu te amo” e com o beijo mais lindo que já presenciei, conseguiram ser mais verdadeiros que todos os “eu te amo” falados nas outras cerimonias e nos quatro cantos do mundo.


quinta-feira, 12 de novembro de 2015

João

João.

Eu queria poder te dizer que sua vida vai ser maravilhosa, mas infelizmente não posso. Meu pequeno gigante, você nasceu em uma sociedade onde matar uma criança com um tiro na testa é só mais uma manchete em uma página de jornal, onde pessoas gritam nas ruas para aprisiona-las em celas imundas e sem condições humanitárias, onde a maldade dos homens está explícita em cada gesto ou palavra.

Óh meu João, eles roubaram tua infância que mal começou. Viestes na época do caos, na época em que balas tomam o teu lugar de brincar nas ruas. Não se sinta culpado se um dia algum deles te parar na rua e começar usar força fora do normal, te xingar de "faveladinho", "drogadinho”, “negrinho” ou de coisa pior e te mandar encostar no muro mais próximo. Você não tem culpa de ter nascido em uma sociedade doente, João. Você não tem culpa da maldade que impera em cada canto das ruas. Você não tem culpa meu amor, daqueles que deveriam proteger, serem os primeiros a fazer o contrário.

Aproveita, querido. Aproveita que a única coisa que pode te tirar o sorriso é o brinquedo jogado no chão, aproveita enquanto você vê a pureza em tudo, aproveita enquanto eu ainda posso te proteger em meus braços. Não queira crescer meu amor, o mundo lá fora é horrível. Acredite, ele é bem pior do que o seu quarto escuro em uma noite chuvosa. 

domingo, 8 de novembro de 2015

Não!

Troca o short.
Coloca um vestido menos justo.
Veste uma saia maior.
Tira esse batom vermelho, usa um mais claro.
Não use tanta maquiagem.
Não vá para o bar.
Não fale alto.
Não chame palavrão.
Não goste de futebol.
Compra uma Barbie para a sua filha.
Pinta o quarto dela de rosa.
Lave a louça.
Vá cozinhar.
Vá arrumar a casa,
Vá...

NÃO! 

Eu não vou trocar de roupa, eu não vou tirar o meu batom vermelho. Eu vou para o bar, vou beber, se eu quiser falar alto ou palavrão, eu irei. Eu vou sim continuar assistindo os jogos do meu time. E não! Eu não vou dar uma Barbie para a minha filha e muito menos pintar o quarto dela de rosa, ela gosta de roxo e preto por causa da Ravena. E sim, eu vou lavar a louça, vou cozinhar, vou arrumar a casa. Mas é porque eu quero e não porque um homem mandou.

Eu sou mulher. 
Sou livre. 
Sou dona do meu corpo. 
Meu lugar é onde eu bem entender. 
E não, nenhum homem vai ditar regrar por aqui. 

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Marina tinha 17 anos.

Marina tinha 17 anos.
Era sábado, Marina gostava de sair com as amigas.
Marina vestiu a blusa que gostava junto da saia preta e passou o batom vermelho.
Marina saiu.
Marina foi para uma festa que ficava a cinco ruas de casa.
Marina bebeu assim como quase todos os jovens que estavam lá.
Marina só queria esquecer os problemas.
Mas o problema só estava começando para Marina.

Lá para às três da manhã Marina resolveu voltar para casa. Ela não queria perturbar as amigas e foi sozinha.
Faltava duas ruas para Marina chegar em casa.
Um homem segurou Marina.
Ela tentou gritar, ele a impediu.
Ela tentou se soltar, ele bateu em seu corpo frágil.
Marina foi invadida.
Marina foi abusada.
Marina foi agredida.
Marina foi exposta.

Não conseguiu voltar para casa, foi logo para o hospital. Só queria a tal pílula que as amigas tanto falavam.
Não lhe deram. O Estado proibiu, era ilegal.
"Mas e o que fizeram comigo?"
Mandaram ela ir numa delegacia prestar B.O.
Marina não foi. Marina estava com vergonha, não queria se expor, ainda mais numa delegacia...
Cheia de homens.

Marina engravidou. Marina engravidou do seu pior pesadelo.
Ela não queria aquele futuro bebê.
Ele significava tudo o de ruim na vida dela. Vergonha, medo, opressão, violência.
Marina não teria apoio de ninguém.
Marina resolveu abortar.
Marina não tinha dinheiro e foi nessas clínicas meia boca.
Marina morreu.
Marina morreu na mesma maca fria que outras meninas. Que outras milhares de meninas.
Saiu nos jornais. Tentativa de aborto.

A culpa é dela, disseram.
Ela pediu, quem mandou beber?! Gritaram.
Quem mandou sair de casa a noite? Julgaram.

Pobre Marina, só queria esquecer os problemas. Mas o problema a seguiu até depois de morta.
O homem que atacou Marina é o problema. Essa sociedade doente é o problema. O Estado que a impediu de ser dona do próprio corpo é o problema.
Onde isso vai parar?
Quantas vidas de mulheres o Estado vai tirar?
Quantas Marinas vão morrer?
Quantas Marinas vão sofrer?

Eu sofro por Marina.
Eu luto por Marina.
Eu luto por toda liberdade que foi tirada.
Eu luto porque quero ser dona do próprio corpo.
E você?
Você luta pelo que?
Ou você só fica calado vendo inúmeras Marinas morrerem?
Amigo, o sangue também está em suas mãos.


quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Ei menina.

Ei menina. 

Sim, é com você mesma que estou falando. Você já se olhou no espelho hoje, querida?

Não?

Tá esperando o quê? Se olhe.

Não me diga que está com vergonha da imagem que ele vai refletir.

Não. Não diga isso.

Vou te contar um segredo, ok?

Você é linda. 

Sim, isso. Você é linda. L-i-n-d-a.

Você é maravilhosa.

Seu sorriso é lindo.

Seu cabelo então... deixe ele do jeito que você quer, não se guie por revistas.

E seu corpo então? Você tem curvas menina. Não pare de comer por causa delas. Suas curvas são lindas.

Ah menina, não se machuque, não se maltrate, não se ponha para baixo, não tente destruir suas imperfeições... até elas são lindas.

Ei menina! Posso te dar um conselho? 

Não passa de cabeça baixa na frente do espelho, tira a toalha de cima dele. Vá se olhar! Contemple a obra prima que você é.

Menina... Ah menina, se ame. A realidade é que você é o seu verdadeiro amor.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Cantada.

Cantada não é elogio. Cantada é invasão, exposição, é violência. Cantada machuca. Cantada dói. Cantada deixa marcas para a vida toda. Cantada é abuso.

Meu nome não é "psiu", nem "oh lá em casa", meu nome é... espera, eu não quero te dizer o meu nome. Sabe o quê eu quero? Eu quero andar pelas ruas sem que algum homem pare e vire para olhar minha bunda. Eu quero andar pelas ruas sem nenhum homem colocar a cabeça para fora do carro e gritar o quanto eu sou gostosa ou estou uma delícia. Eu quero andar a noite sem ter medo de encontrar um homem. Eu quero poder andar na rua a noite sem prender a respiração e acelerar o passo quando percebo que tem alguém atrás de mim. Eu quero poder usar o short que eu quiser, quero poder usar a saia quem eu bem entender, quero poder usar uma blusa curta ou uma blusa apertada sem ninguém dizer que estou pedindo. Eu quero vestir o que eu quiser. Eu quero usar batom vermelho, roxo, laranja, quero usar um delineador preto, quero usar maquiagem sem tem que escutar que homem não vai gostar.

Sabe o que eu quero? Eu quero liberdade. Não. Liberdade é pouco para o que eu quero e preciso. O que eu quero ainda não existe nome.